Em todos os atos de sua vida o homem deve
empregar certo método, sem o qual, os fins que persegue não podem ser
alcançados. Assim deve ser feito, quer se trate de coisas materiais ou
espirituais. Tão impossível será ao padeiro fazer pão se não amassou a farinha
e aqueceu o forno, quanto ao homem que aspira a uma vida moral realizar o seu
sonho, se não conseguiu previamente adquirir as diversas qualidades cujo
conjunto faz que a possua, e se diga: “é um homem de uma vida moral
inatacável”. Será preciso ademais que, para adquirir estas qualidades, siga uma
marcha lógica e ordenada; que comece pelas virtudes fundamentais, e que suba
uma atrás da outra as etapas que hão de levar-lhe ao fim que anseia.
Em todas as doutrinas morais, existe uma escala
que, como disse a sabedoria chinesa, vai da terra ao céu e cuja ascensão
não pode realizar-se de outro modo que começando pela primeira etapa.
Prescrevem a mesma regra os brâmanes, os budistas e os partidários de Confúcio;
encontra-se também nas doutrinas dos sábios da Grécia.
Todos os moralistas, tanto os deístas como os
materialistas, reconhecem a necessidade de uma sucessão definitiva e melódica
na assimilação das virtudes sem as quais não há vida moral possível. Esta necessidade
se desprende da mesma essência das coisas e parece, portanto, que todos
deveriam aceitá-la. Mas coisa estranha! Desde que o cristianismo se converteu
em sinónimo de Igreja, a consciência desta necessidade tende a apagar-se e só a
conservam os ascetas e os frades.
Entre os cristãos laicos, admite-se que um homem
possa possuir virtudes superiores sem haver começado por adquirir aquelas
que, normalmente, deveriam haver sido conquistadas em primeiro lugar:
alguns vão mais longe ainda, e pretendem que a existência de vícios
determinados de um indivíduo não o impeçam de possuir ao mesmo tempo
virtudes elevadas.
Resultou disto que hoje, entre os laicos, a noção
da vida moral está, se não perdida, muito atrapalhada pelo menos.
II
Isto ocorreu, a meu juízo, do seguinte modo:
O cristianismo, substituindo o paganismo,
colocou, a princípio, uma moral mais exigente; mas esta moral, como a do
paganismo, só poderia conseguir-se depois de haver percorrido todos os
graus da escala das virtudes.
Segundo Platão, a abstinência era a primeira
qualidade que importava adquirir. Vinha depois o valor, a sabedoria e a
justiça, a qual, segundo a sua doutrina, era a mais alta virtude que pode um
homem possuir. A doutrina de Jesus Cristo ensinava outra progressão: o sacrifício,
a fidelidade à vontade divina e, acima de tudo, o amor.
Os homens que se converteram seriamente ao
cristianismo, e que trataram de levar uma vida moral cristã, começaram
contudo por adotar o primeiro princípio da doutrina pagã, abstendo-se do
supérfluo.
Isso não significa que o cristianismo se
apropriou do que o paganismo pregara antes dele. Ou que se pretenda rebaixar o
cristianismo, equiparando a sua alta doutrina ao baixo nível da pagã. Seria
injusto; reconheço que a doutrina cristã é a mais alta que existe e não se
compara ao paganismo.
A doutrina cristã é superior à dos pagãos e foi
por isso que a suplantou; mas nem por isso podemos deixar de reconhecer que
tanto uma como a outra encaminham o homem para a verdade e para o bem, e como
ambas as coisas são no fundo imutáveis, o caminho que a elas conduz deve ser
único. É por isso que os primeiros passos a serem dados em tal caminho devem
ser forçosamente iguais, trate-se de cristãos ou pagãos. Qual é, pois, a
diferença entre ambas as doutrinas? É que, ao contrário da doutrina pagã, que
por sua própria natureza é limitada, a cristã tem uma tendência contínua para a
perfeição.
Platão, por exemplo, estabeleceu como modelo de
perfeição a justiça; enquanto Jesus Cristo escolheu a perfeição indefinida: o
amor. “Sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celestial”. Nisto consiste a
diferença. E, portanto, as diferentes relações dos ensinamentos dos pagãos e
dos cristãos para os diferentes graus da virtude.
Segundo o paganismo, antes de se conseguir a virtude
mais elevada, os graus intermediários que se alcançam têm uma importância
relativa: quanto mais altos são, maior a somatória de virtudes que precisam.
Resulta disso que, do ponto de vista pagão, pode-se ser mais ou menos virtuoso
ou mais ou menos vicioso.
Segundo a doutrina cristã, se é ou não virtuoso.
Pode-se ser virtuoso com mais ou menos rapidez, mas ninguém se reputa como tal
até que haja cumprido sucessivamente todos os requisitos necessários para isso.
Vou explicar-me. Para os pagãos, o homem prudente
é virtuoso; mas aquele que à prudência acrescenta o valor, o é mais que o
outro, e se a estas duas qualidades se acrescenta o sentimento da justiça, alcança-se
a perfeição. O cristão, pelo contrário, não pode ser superior nem inferior a
outro moralmente, mas é mais cristão quanto mais rapidamente anda pelo caminho
da perfeição, seja qual for o grau em que se encontre num dado momento; de modo
que a virtude estacionária de um fariseu é menos cristã que a do ladrão, cuja
alma se encontra em pleno movimento para o ideal e que se arrepende na cruz.
Tal é a diferença entre ambas as doutrinas. O
paganismo considera a abstinência como uma virtude, quando o cristianismo
não a admite mais que como um meio de encaminhar-se ao sacrifício,
condição primeira de uma vida moral.
Entretanto, nem todos os homens consideram a
doutrina de Jesus Cristo como uma tendência contínua à perfeição; a maioria compreendeu-a
como uma doutrina redentora; a redenção do pecado pela graça divina,
transmitida pela Igreja, entre católicos e ortodoxos, e a crença na redenção
entre os protestantes e calvinistas. Esta doutrina fez desaparecer a
sinceridade e a seriedade da atitude dos homens a respeito da moral cristã. Os
representantes destes organismos poderão pregar interminavelmente que tais
meios de salvação não impedem ao homem aspirar a uma vida moral, mas, pelo
contrário, a isso o induzem; mas certas situações engendram por si mesmas
certas conclusões, e nenhum argumento poderá impedir que os homens a aceitem.
Eis aqui por que o homem que está imbuído nesta
crença de redenção não terá energia suficiente para assegurar a sua
salvação por meio dos seus próprios esforços: achará muito mais simples
aceitar o dogma que lhe foi ensinado, e esperar que a graça divina
lhe perdoe as faltas que pode cometer.
Isso é o que ocorreu à maioria dos adeptos do
cristianismo.
III
Tal é a causa principal do relaxamento dos
costumes. Para que conformar-se com certos hábitos? Para quê privar-se de tal
ou qual coisa, já que o resultado há-de ser o mesmo? Para que deixar costumes
agradáveis, já que a recompensa há-de vir de todos os modos? Recentemente
publicou o Papa uma encíclica sobre o socialismo. Neste documento, o chefe da
Igreja, depois de uma pretendida refutação da doutrina socialista sobre a
ilegitimidade da propriedade, disse expressamente que “ninguém tem a obrigação
de socorrer o próximo se não tem mais que o necessário para si ou a sua
família, ou se, para fazê-lo, tenha de diminuir aquilo que exigem as
conveniências mundanas. Ninguém, de facto, deve viver prescindindo de tais
conveniências”. (Isso foi retirado de São Tomás: Nullus enim
inconveniénter débet vívere). “Mas depois de haver satisfeito as
necessidades e as conveniências exteriores" – diz ao fim da encíclica –, “é
dever de todos dar o supérfluo aos pobres”.
Assim prega o chefe da Igreja mais difundida hoje
em dia; assim pregavam os pais da Igreja, que criam insuficiente a salvação por
meio da ação.
Junto à pregação desta doutrina egoísta que
prescreve dar ao próximo aquilo que não nos é necessário, prega-se o amor a
esse mesmo próximo, e sempre se citam com ênfase as célebres palavras
pronunciadas por Paulo no capítulo XIII da sua primeira Epístola aos Coríntios.
Embora a doutrina do evangelho esteja cheia de chamamentos à abnegação, e
afirme que esta virtude é a primeira das condições para alcançar a perfeição
cristã; embora se diga que “quem não tomar a sua cruz, quem não renegar seu pai
e sua mãe, quem não arriscar a sua vida...”, estes homens persuadem os demais
de que não é necessário, para amar o próximo, sacrificar aquilo a que se está
acostumado, e que basta dar o que se julgue conveniente.
Assim falam os pais da Igreja. Portanto, aqueles
que rechaçam a doutrina da Igreja (em todo o que se refere a manifestações
exteriores de culto) pensam, falam e escrevem de igual maneira que os
livres-pensadores. Estes homens creem e fazem crer aos outros que, sem
necessidade de refrear as suas paixões, pode-se servir à humanidade e levar uma
conduta moral.
Os homens, depois de rechaçar as práticas pagãs,
não souberam assimilar a verdadeira doutrina cristã; não admitiram a
marcha progressiva no caminho da virtude, e permaneceram estacionários.
IV
Noutro tempo, antes da aparição do cristianismo,
todos os grandes filósofos, começando por Sócrates, acreditavam que a primeira
das virtudes a ser adquirida era a abstinência, e que querer adquirir outra sem
possuir esta era impossível.
É evidente, de facto, que o homem que não sabe
conter-se é presa fácil para todos os vícios, e não pode levar uma vida moral.
Antes de pensar na generosidade, no amor, no desinteresse, na justiça, é
necessário que o homem aprenda a dominar-se e que seja bastante forte para
vencer os seus apetites.
Tal como hoje se enxerga, tudo isso é inútil;
temos a convicção de que o homem pode levar uma existência completamente
moral, e, no entanto, deixar-se arrastar pela sua paixão pelo luxo e pelos
prazeres.
Parece que, seja qual for o ponto de vista –
utilitário, pagão ou cristão – em que alguém se coloque, o homem que explora
por seu próprio gosto o trabalho, e frequentemente, o trabalho mais penoso dos
demais, age mal, e este é o primeiro costume que deve rejeitar, aspira-se a
levar a existência própria de um homem honrado.
Do ponto de vista utilitário, é uma má ação, pois
obrigando os demais a trabalhar para ele, encontra-se sempre o homem numa
situação deplorável: acostuma-se a satisfazer as suas paixões, e converte-se em
seu escravo, já que as pessoas que trabalham para ele o fazem com inveja e
descontento, e só esperam uma ocasião favorável para se livrar dessa
necessidade. Por conseguinte, o homem encontra-se sempre exposto a manter-se
com costumes arraigados, que num dado momento talvez não poderá satisfazer.
Do ponto de vista da justiça, é também uma má
ação, porque é mau aproveitar para seu prazer o trabalho de indivíduos que, por
esta única condição, não podem dispor a centésima parte das alegrias que
contribuem para assegurar ao que os empregam. Do ponto de vista do amor
cristão, parece supérfluo demonstrar que o homem que realmente ama seu próximo,
longe de se servir do trabalho alheio, deve dar, pelo contrário, uma parte da
sua atividade para contribuir ao bem-estar dos demais.
Estas exigências do interesse, da justiça e do
amor, as desenha por completo a nossa sociedade. Segundo a doutrina dominante
hoje em dia, considera-se como coisa desejável o aumento dos benefícios,
como um indício de desenvolvimento intelectual, de civilização e de perfeição.
Os homens que são chamados de instruídos estimam
que estes costumes de luxo, que esta tendência ao refinamento, são indícios
certos de uma superioridade moral que se equipara à virtude. Quanto mais
necessidades têm, mais refinados são e mais valem.
A poesia descritiva e as novelas do último e
penúltimo século corroboram o que dizemos. Como se pinta os heróis e heroínas
que representam o ideal da virtude? Na maioria dos casos os homens que devem
representar algo nobre e elevado, desde Childe-Harold até os últimos heróis de
Félier, Trolop e Maupassant, são parasitas que devoram com o seu luxo o
trabalho de milhares de homens, enquanto que nenhum deles é útil para nada nem ninguém.
Quanto às heroínas, não são mais que cortesãs que
proporcionam mais ou menos prazer aos homens, e que desperdiçam o trabalho
alheio em proveito do seu luxo.
Recordo que quando eu escrevia novelas passava
uma dificuldade quase insuperável; contra ela lutei e lutam ainda hoje quantos
novelistas tenham consciência do que é a beleza moral verdadeira; esta
dificuldade consiste em descobrir o tipo de homem do grande mundo idealmente
bom e belo, e ao mesmo tempo conforme à realidade.
A descrição do homem e da mulher do grande mundo
não será verdadeira senão quando o personagem se apresentar no meio
ambiente que lhe é próprio; a saber, no luxo e na ociosidade.
Do ponto de vista moral, esse personagem resulta
pouco simpático, mas há que apresentá-lo de modo que o seja. Isso é o que os
novelistas tratam de fazer, como eu tratei de fazê-lo igualmente. Para quê
tanto trabalho? Os leitores habituais dessas novelas quase sempre não têm um
nível moral parecido ao do herói que se lhes descreve? Não têm também as mesmas
inclinações e iguais costumes? Para que então tantos cuidados para fazer-lhes
simpáticos os Childe-Harold, os Onegin, os de Camors, posto que já se acham inclinados
a considerá-los como perfeitos?
V
Prova irrefutável de que os homens de hoje em dia
não consideram a abstinência pagã e a abnegação cristã como qualidades
desejáveis e boas, é a educação que se dá às crianças: em vez de procurar
fazê-las fortes e valentes, acostumamo-los à ociosidade.
Faz muito tempo que pensei escrever o seguinte conto:
Uma mulher ofendida por outra e desejando
vingar-se dela rouba-lhe o seu único filho.
Vai a casa de um feiticeiro e pergunta-lhe como
poderia vingar-se mais cruelmente da sua inimiga por meio do seu filho. O
feiticeiro aconselha-a a levar a criança a determinado local e promete uma
terrível vingança. A mulher má segue o conselho, mas não perde de vista a
criança; depois, com grande surpresa, percebe que foi recolhida por um homem
sem herdeiros. Volta à casa do feiticeiro e cobre-lhe de censuras; ele contesta
que não chegou ainda a hora, e que tem que esperar. No entanto, o menino cresce
entre o luxo e a abundância; a mulher má está estupefacta, mas o feiticeiro aconselha-a
que espere. De facto, chega um momento em que a sua vingança resulta em tão
terrível, que a mulher má acaba por ter compaixão da sua vítima. O menino, que
cresceu entre riquezas, arruína-se, e então começa para ele uma série de
privações e de sofrimentos físicos contra os quais não pode lutar, e que tem de
suportar com tristeza indizível. Por um lado, nobres aspirações o conduzem a
levar uma vida regular, e por outro, sente a impotência da sua carne debilitada
pelo luxo e pela ociosidade.
É uma luta sem esperança, uma queda contínua,
cada dia mais profunda; logo a embriaguez como meio de esquecimento, e por
fim, o crime, a loucura ou o suicídio.
É verdade que a educação de algumas crianças da
nossa época inspira terror. Apenas os mais implacáveis inimigos dessas crianças
poderiam tomar-se tanto trabalho para inculcar-lhes a imbecilidade e os vícios
que devem a seus pais, e muito especialmente a suas mães; e aumenta o horror,
quando vemos os resultados que esta educação produz e os estragos que faz na alma
das crianças, tão cuidadosamente corrompida por seus pais. Incumbem-lhes
costumes refinados; não lhes ensinam a dominar as suas inclinações. Sucede
então que o homem longe de se sentir atraído pelo trabalho e de sentir amor pela
sua obra, tendo consciência do que fez, acostuma-se pelo contrário à
ociosidade, ao desprezo de todo trabalho produtivo e ao desperdício.
Perde a virtude da primeira noção que deve
adquirir-se antes da outra: a prudência; e entra na existência onde se prega e
aparentemente se aprecia as altas virtudes da justiça, do amor e da caridade. O
homem é feliz se ainda é moço, de uma natureza moralmente débil, se não sabe
discernir a moralidade nas aparências da moralidade, se pode contentar-se com a
mentira que é lei da sociedade como um todo. Se assim sucede, tudo vai bem, e o
homem que tem o sentido moral adormecido pode viver feliz até ao seu último
dia.
Mas nem sempre ocorre assim, sobretudo nestes
últimos tempos, quando a consciência da imoralidade de tal existência vibra no
ar, e fere apesar de tudo no coração. Sucede que, cada vez mais frequentemente,
aparecem os princípios da verdadeira moral, e começa então uma penosa luta
interior, um sofrimento que raramente acaba com vantagem para a moral.
Compreende o homem que a sua vida é má, que
deveria mudá-la totalmente, e trata de fazê-lo; mas então os que suportaram já
igual luta, sucumbindo a ela, lançam-se de todas as partes sobre o que tratava
de cambiar a sua existência e esforçam-se em persuadi-lo da inutilidade da sua
luta, procuram provar-lhe que a continência e a abnegação não são necessárias
para ser bom, e que pode ser um homem útil e reto, apesar de se entregar à
gula, ao luxo, à ociosidade e até à luxúria. Esta luta tem, por regra geral, um
fim lamentável, quer o homem se submeta à opinião geral, e cesse de escutar a
voz da sua consciência e recorra a subterfúgios para se justificar, quer lute,
sofra, enlouqueça ou se suicide. É raro que, entre todas as tentações que o
rodeiam, um homem da nossa sociedade compreenda que existe e que existiu
durante milhares de anos uma verdade primitiva para todos os homens prudentes;
que, para chegar a uma existência moral, é preciso, antes de tudo, deixar de
ter má conduta, e que, para alcançar uma alta virtude, é necessário adquirir a
da abstinência e da possessão de si mesmo, como pensavam os pagãos, ou a
virtude da abnegação, como prescreve o cristianismo.
VI
Acabo de ler as cartas de nosso muito erudito
senhor Ogarev, o exilado, a outro erudito, o senhor Herzen. Nelas, o
senhor Ogarev expressa os seus pensamentos íntimos, as suas tendências
mais elevadas, e em seguida avisa-se que finge algo. Fala da perfeição, da
amizade saudável, do amor, do culto da ciência, da humanidade... E pouco
depois, em igual tom, escreve que às vezes irrita um amigo seu em cuja
casa vive, porque “volto às vezes embriagado ou porque passo longas horas
com um ser caído, mas encantador”...
Simpático, de grande talento, de grande erudição,
este bom senhor não imagina que comete uma falta – estando casado e esperando a
cada instante o parto de sua mulher –, pelo simples facto de se embriagar e de
passar o tempo na companhia de uma prostituta. Não lhe passou sequer pela
imaginação que enquanto não tiver começado a lutar e dominado em parte, pelo
menos, as suas tendências à embriaguez e à luxúria, não terá direito a pensar
na amizade, no amor, nem muito menos em um qualquer culto.
Não somente não luta contra tais vícios, mas os
anseia como algo encantador e que não o impedem, nem muito menos, a sua
tendência à perfeição; e longe de ocultá-los ao seu amigo, ante quem
deseja parecer sob seu melhor aspecto, vangloria-se deles.
Assim se fazia, faz cinquenta anos. Conheci ainda
esses homens, conheci Ogarev e Herzen e a muitos que lhes são parecidos,
educados todos de igual modo. Em todos eles se notava uma ausência
absoluta de método e de perseverança; mostravam um desejo ardente de
perfeição, e em troca se entregavam à libertinagem mais desenfreada. Acreditavam,
no entanto, que isso não lhes impedia de levar uma existência moral, e que
podiam realizar, apesar de tudo, ações boas e até grandes.
Colocavam num forno frio farinha sem amassar, e achavam
que o pão assaria. E quando nos seus últimos dias perceberam que o pão não
assava, que a sua existência não teve nenhum resultado útil, pareceu-lhes aquilo
o golpe terrível do destino.
Tal destino é terrível, de facto. Esta situação
trágica dos Herzen, Ogarev e outros fere ainda hoje em dia a grande número
de homens, que se creem instruídos e que conservaram opiniões iguais. O
homem tende a ter bons costumes; mas a regularidade necessária para tanto
não existe na sociedade atual. Como os Ogarev e Herzen, de cinquenta anos
atrás, a maioria dos homens atuais creem que uma vida refinada, uma
alimentação abundante, os prazeres e a luxúria não os impedem de levar uma
existência moral. Mas é provável que não atinjam o seu objetivo, já que se
sentem no máximo pessimistas e dizem: “É uma situação trágica a do homem”.
O surpreendente é que esses homens saibam que a
distribuição dos prazeres entre os homens é desigual, que considerem essa
desigualdade como um mal, que queiram remediá-lo, e que, no entanto, não
cessem de tender ao aumento desses prazeres.
Agindo assim, esses homens parecem-se a pessoas
que, entrando num pomar, se apressam a colher toda a fruta que está ao
alcance da sua mão, apesar do que desejam estabelecer uma repartição mais
equitativa dela, no entanto, continuam apoderando-se de tudo quanto podem.
VII
O erro de que falamos é tão incompreensível, que
estou certo de que as gerações vindouras não compreenderão o que os homens
da nossa época entendiam por “vida moral”, ao afirmar que o comilão, o
degenerado, o libertino, o ocioso das classes ricas levavam uma vida
moral.
De facto, bastaria abandonar a maneira habitual
de considerar a vida que levam as classes ricas, e observá-la, não do ponto de
vista cristão, mas pagão, ou do ponto de vista da justiça mais elementar, para
convencer-se de que ante esta violação das leis mais simples e primitivas da
justiça, leis que as crianças mesmo não se atreveriam a violar nos seus jogos,
e entre as quais vivemos, não pode pensar-se numa existência moral. Quantas
vezes nos servimos, para justificar a nossa má conduta, da afirmação que quer
que um ato contraposto aos costumes da vida habitual não é natural, mas que
indica o desejo de exibir-se, e é portanto uma má ação! Esta argumentação
parece inventada para que os homens não abandonem jamais a sua má conduta. Se a
nossa vida fosse sempre justa, toda ação conforme a tal vida seria forçosamente
justa, e se a nossa vida não é senão medianamente boa, há outras tantas
probabilidades para que toda ação que não está conforme com o parecer geral
seja boa ou má; se, enfim, a nossa vida é má, como a das classes diretoras, é
impossível fazer uma boa ação sem comprometer a marcha regular da nossa vida.
A moralidade desta, segundo a doutrina pagã e até
a cristã, não se pode definir mais que pela relação, no sentido matemático, do
amor a si com o amor ao próximo. Quanto menos amor se sente por si mesmo, menos
cuidados e trabalhos se exige dos outros, e quanto mais amor se sente pelo
próximo, mais se trabalha a favor deles e mais moral é a vida.
Assim entendiam e entendem a boa vida todos os
sábios da humanidade e todos os verdadeiros cristãos; igual a compreendem
todas as pessoas simples. Quanto mais o homem dá ao próximo, e menos exige
para si, mais perto está da perfeição. Quanto menos dá aos outros, e mais
exige para si, mais se afasta da perfeição.
Se você mudar o ponto de apoio de uma alavanca
aproximando-o ao braço mais curto, a consequência disso, não só o braço mais
largo será mais largo ainda, mas o braço curto será também mais curto. De igual
modo, se o homem, tendo certa faculdade de amar, aumenta o amor a si mesmo e os
cuidados egoístas, diminui em consequência disso a possibilidade do amor e dos
cuidados que deve dedicar aos outros, não apenas na quantidade de amor que
acumula sobre si mesmo, mas em proporções muito maiores. Em vez de dar de comer
aos outros, o homem come esse excesso, e por conseguinte, não só diminui a
possibilidade de dar esse excesso, mas, estando farto, se priva da
possibilidade de pensar nos demais.
Para ser capaz de amar aos outros, não há que
amar-se a si mesmo de um modo exclusivo. Mas, por regra geral, pensamos
que amamos os demais, e na realidade só os amamos de palavra, não de facto.
Esquecermo-nos de dar comida e teto aos demais; não nos esqueceremos de
nós mesmos. E eis aqui por que, para amar realmente aos outros, há
que aprender a esquecer de comer e de dormir, como fazemos com os demais.
Dizemos: “Um bom homem”, e “leva uma conduta
moral”, de um homem refinado, acostumado ao luxo. Um homem assim pode ser
bom, mas não levar uma conduta moral, como uma faca da melhor têmpera não
pode cortar se não está afiada. Ser bom e ter bons costumes quer dizer:
dar aos outros mais do que recebe. O homem acostumado ao luxo não pode
fazê-lo, primeiro porque as suas necessidades não o permitem, e depois,
porque consumindo quanto os outros lhe dão, se debilita e fica inútil para
todo trabalho.
O ser humano (homem ou mulher) dorme numa cama
com colchão de molas, dois colchões de lã, dois lençóis, fronhas,
almofadas macias; junto à cama tem um tapete para proteger os seus pés
contra o frio, ainda quando usa pantufas, e na mesa de cabeceira
os acessórios necessários para que não tenha que ir mais longe; pode
satisfazer sem mover-se todas as suas necessidades; tudo isso não basta...
As janelas estão protegidas por cortinas, a fim de que a luz não lhe
impeça de dormir, e dorme até a saciedade.
Tudo foi previsto para que no Inverno tenha
calor, ou esteja fresco no Verão, e para que não lhe molestem o ruído, as
moscas e outros insetos; dorme, e ao despertar, encontra água quente e
fria para o banho e para se barbear. Preparam-lhe chá ou café, bebidas
excitantes que toma assim que se levanta; as botas altas, as botinas, os
sapatos de borracha que sujou na véspera, estão já limpos e reluzem como
cristal, sem um grão de pó. Limpam-lhe também os trajes que usou na
véspera, dos quais tem coleção completa, não só os de Inverno e Verão, mas
para a Primavera e Outono, para os dias chuvosos, muito quentes ou húmidos,
etc.
Preparam-lhe roupa branca recém-lavada, engomada,
passada, com botões e botoeiras que revistam uns criados que se dedicam
exclusivamente a isso. Se o homem é ativo, levanta-se cedo, a saber, às sete da
manhã, para sempre duas ou três horas depois que os que tiveram que
preparar tudo para ele. Para além das preparações, dos trajes para o dia e das
mantas e colchas para a noite, há ainda a bata e as pantufas para quando
se levanta. Quando se lava, limpa e penteia, emprega para isso uma infinidades
de escovas, sabões e água em abundância (muitos ingleses, e as mulheres
sobretudo, mostram-se orgulhosos, não sei por quê, de empregar muito sabão
e usar muita água). Depois, o homem veste-se, penteia-se diante de um
espelho especial, além dos que há em quase todas as habitações. Toma
quanto necessita: óculos, um lenço para se assoar, um relógio com
corrente, ainda quando onde quer que vá encontrará relógios; provê-se de
toda classe de dinheiro, de cobre, de ouro, de bilhetes de Llanca,
de cartões impressos com o seu nome – o qual lhe dispensa o trabalho de
escrevê-lo – de um livreto de memórias, de um lápis, etc.
Quanto à mulher, tudo resulta mais complicado
ainda: espartilhos, cabelo, jóias, fitas, laços, garfos, pinos, borla...,
etc.
Quando se acabam os cuidados da penteadeira,
começa o dia, pela regra geral, comendo: todo café ou chá com grande
quantidade de açúcar, come bolos, pão de primeira qualidade com manteiga,
e às vezes, presunto. Os homens, na sua maioria, fumam cigarros
ou charutos, enquanto leem o periódico que acabam de lhe trazer; depois de
sujar o ambiente, deixa aos demais o cuidado de limpá-lo.
Vai para o escritório ou aos negócios, dá um passeio
de carruagem, logo come geralmente carne de animais sacrificados, de
bovinos, de aves, de pescados; depois vem a comida, também muito
substanciosa: dois ou três pratos para os mais parcos, as sobremesas, o
café; depois as cartas, a música, o teatro, a leitura ou a conversação,
afundados em poltronas de mola, à luz viva ou fraca das velas, de gás, ou
de eletricidade; outra vez chá, outra vez comida, isto é, o jantar, e de
novo a cama, bem-feita, aquecida, com lençóis limpos e o penico reluzente.
Tal é a jornada do homem que leva uma vida arranjada e de quem se diz, que tem
um caráter suave, que possui hábitos de ordem e que é homem de bons
costumes. Mas a vida moral é a do homem que cuida do seu próximo; e como
um homem acostumado a tal existência pode cuidar daquele? Antes de pensar
no bem devo deixar de fazer o mal, e, entretanto, contando todo o mal que
faz aos homens às vezes inadvertidamente, verá que está longe de alcançar o
seu objetivo.
Seria melhor para ele, física e moralmente,
deitar-se no chão, envolto no seu manto como Marco Aurélio. Quanto trabalho e
cuidados evitaria assim aos que o rodeam! Poderia deitar e levantar mais
depressa, e não teria que pensar nem na luz de noite, nem nas cortinas pela
manhã. Poderia dormir com a mesma camisa que vestia durante o dia, andar
descalço pelos cômodos e pelo pátio, lavar-se com a água do poço, viver, numa
palavra, como vivem todos os seus criados. Conhece, no entanto, quanto trabalho
lhes custa a eles as diversas ocupações que a sua comodidade exige. Como, pois,
semelhante homem pode fazer algo bom, sem abandonar a sua vida de luxo?
Não posso deixar de repetir sempre o mesmo,
apesar do silêncio frio e hostil com que se acolhem minhas palavras.
Um homem de moral que goza de todas as
comodidades, e basta o homem da classe média – exceção feita ao homem rico que
gasta para os seus caprichos centenas de jornadas de trabalho a cada vinte e
quatro horas –, não pode viver tranquilo sabendo que tudo aquilo de que usufrui
é fruto do trabalho de gerações trabalhadoras, oprimidas sob o peso de uma
existência esmagadora e que morrem ignorantes entregues à embriaguez e à
libertinagem, meio selvagens, nas minas, nas fábricas, nas oficinas, ao pé do
arado, produzindo os objetos que servem para o homem de condição superior. Eu,
que escrevo isso, e vocês que me lerão, temos uma alimentação suficiente, com
frequência abundante, delicada, ar puro, roupas de Inverno e de Verão, toda
classe de distrações, diversões durante o dia, e repouso completo à noite. E
junto a nós vive o povo trabalhador que não tem alimentação nem habitação
sadia, nem roupas suficientes, nem distrações, e que, muito frequentemente, não
goza sequer do descanso, durante a noite; velhos, crianças, mulheres, esgotados
pelo trabalho, pelas noites sem sonho, pelas doenças, veem-se obrigados a
trabalhar durante a sua vida inteira para nós, a produzir os objetos de luxo
que eles não irão possuir, e que para nós constituem não uma necessidade, mas
algo supérfluo.
Eis aqui por quê um homem bom, e não digo um
cristão, mas um amigo da humanidade ou simplesmente da justiça, não pode
pelo menos desejar mudar a sua vida, e deixar de se servir dos objetos de
luxo produzidos pelos trabalhadores em tais condições. Se o homem sente
realmente piedade por aqueles seus semelhantes que produzem o tabaco, o
primeiro que deve fazer é deixar de fumar, pois, persistindo do seu vício,
obriga à produção do tabaco e compromete a sua saúde.
O mesmo pode ser dito de todos os objetos de
luxo. Se o homem não pode abster-se de comer pão, apesar do penoso
trabalho que este lhe custa, é porque, enquanto não mudarem as condições
em que trabalha, não pode conquistá-lo sem grande esforço. Mas, quando se
trata de coisas inúteis e supérfluas, se sente pena do próximo que produz
tais objetos, o melhor que pode fazer é renunciar a eles.
Mas os homens do nosso tempo não pensam assim;
alegam toda classe de argumentos, menos o que naturalmente lhe ocorre a
todo homem simples. Segundo eles, é absolutamente inútil abster-se de tal
luxo, e se pode compadecer do estado dos trabalhadores, pronunciar
discursos e escrever livros em seu favor, e continuar ao mesmo tempo
aproveitando o trabalho que consideramos prejudicial para eles.
Há pessoas que dizem que se pode aproveitar o
trabalho esmagador dos trabalhadores, porque se eles não se servirem dele,
outros se servirão. Isso equivale a dizer que devo beber até o vinho
adulterado, porque, se um não o bebe, outros o beberão. Há quem diz que o
desfrute do luxo produzido pelos trabalhadores é muito útil a estes mesmo,
porque assim lhes damos dinheiro, isto é, a possibilidade de viver. Como se não
pudessem procurar esta possibilidade de outro modo que produzindo objetos
prejudiciais para eles e inúteis para nós!
Segundo outros, todo ofício que um homem
desempenhe, empregado, sacerdote, lavrador, fabricante, comerciante, é, em
virtude da divisão do trabalho, tão útil, que resgata todas as penas dos
trabalhadores de que se aproveitam esses pretendidos economistas. Um está
a serviço do Estado; outro, ao da Igreja; o terceiro, ao da ciência; o quarto,
ao da arte; o quinto serve ao servidor do Estado, da Igreja, da arte e
todos estão convencidos de que o que dão aos homens equivale aos que deles
tomam.
Entretanto, se se escuta a opinião de tais
pessoas acerca das suas virtudes recíprocas, vê-se que todos estão longe de
valer o que consomem. Dizem os empregados que o trabalho dos proprietários não
está em relação com o que gastam; os proprietários dizem o mesmo do negociante;
este do empregado, etc., mas isso não os desconcerta, e continuam persuadindo
aos demais de que cada qual aproveita o trabalho alheio na medida do que o
mesmo dá. Segue daí que não é o trabalho o que regulamenta os salários, mas
que, segundo os salários, se mede o trabalho. Eis aqui o que pretendem, mas no
fundo sabem perfeitamente que tais justificações não são verdadeiras, que
nenhum deles é verdadeiramente útil aos trabalhadores, e que não se aproveitam
do trabalho destes segundo o princípio da divisão do trabalho, mas simplesmente
porque não podem agir de outro modo, e porque estão de tal modo pervertidos,
que não podem renunciar a esse princípio.
Tudo isso provém de que os homens creem que se
pode levar uma vida moral sem ter adquirido progressivamente as faculdades
necessárias para levar tal existência. A primeira destas faculdades é a
abstinência.
VIII
Sem a abstinência, não há vida moral possível.
Para alcançar uma vida moral, deve possuir-se tal virtude.
Se, na doutrina cristã, a abstinência é
compreendida na noção da abnegação, não por isso a progressão varia, e
nenhuma virtude cristã é possível, sem a abstinência. Mas essa virtude
nunca se alcança de repente; é preciso uma progressão. A abstinência
significa a liberação do homem da luxúria e a sua submissão à prudência;
o homem tem numerosas paixões, e para lutar com vantagem, deve começar
pelas fundamentais por aquelas que engendram outras mais
complicadas, e não começar por estas últimas, que apenas são a
consequência das primeiras.
Há paixões complicadas como as do luxo das
mulheres, o jogo, os prazeres, o charlatanismo, a curiosidade, e há outras
fundamentais: a gula, a ociosidade, a luxúria. Na luta contra as paixões
não há que começar pelo fim, isto é, contra as paixões complicadas,
deve-se começar pelas que dão origem às outras, e ainda assim, em
gradação definida pela natureza mesma dessas paixões e pela tradição da
sabedoria.
O homem guloso é incapaz de lutar contra a preguiça, e o ocioso e guloso a um tempo não poderá jamais lutar contra a paixão pela mulher. Eis aqui por que, segundo todas as doutrinas, a tendência à abstinência começa pela luta contra a gula, começar pelo jejum. Na nossa sociedade, a primeira virtude, a abstinência, está em absoluto esquecida e também se desconhece a progressão necessária para adquirir tal virtude; ninguém se importa com o jejum; é considerado como uma superstição estúpida e absolutamente inútil.
O homem guloso é incapaz de lutar contra a preguiça, e o ocioso e guloso a um tempo não poderá jamais lutar contra a paixão pela mulher. Eis aqui por que, segundo todas as doutrinas, a tendência à abstinência começa pela luta contra a gula, começar pelo jejum. Na nossa sociedade, a primeira virtude, a abstinência, está em absoluto esquecida e também se desconhece a progressão necessária para adquirir tal virtude; ninguém se importa com o jejum; é considerado como uma superstição estúpida e absolutamente inútil.
E, no entanto, assim como a primeira condição de
uma vida moral é a abstinência, a primeira condição da abstinência é o
jejum.
Pode-se desejar ser bom e sonhar com praticar o
bem sem jejuar; mas em realidade, isso é tão impossível como andar sem
estar em pé.
A gula, pelo contrário, é o primeiro indício de
uma vida licenciosa, e desgraçadamente, tal indício distingue a maioria
dos homens do nosso tempo.
Veja os rostos e os corpos dos homens da nossa
sociedade; todos esses rostos com as barbas e as bochechas pendentes,
esses membros doentes e gordos e o abdómen proeminente, falam de uma vida
licenciosa. Como poderia ser de outro modo? Pergunte qual é o
móvel principal da sua vida? Por muito estranho que isso os pareça o
principal móvel da maioria dos homens de nossa sociedade é a satisfação do
paladar, a satisfação de comer, a voracidade.
Desde os mais pobres aos mais ricos, a voracidade
constitui o objetivo principal da existência. O povo trabalhador apenas
constitui a exceção, na medida em que a necessidade lhe impede entregar-se
a uma paixão tão baixa. Tão logo tem meios e tempo, imitando o que fazem
as classes altas, proporcionam-se os manjares mais agradáveis, e come e
bebe quanto pode. Quanto mais pode comer, mais feliz se crê, e mais forte
e mais saudável. As classes altas lhe confirmam em tal convicção, posto
que assim consideram uma alimentação abundante.
Veja a vida dos ricos; escute as suas conversas.
Que assuntos tão elevados lhes interessam! A filosofia, a ciência, a arte
e a poesia, a distribuição da riqueza, o bem-estar do povo, a educação da
juventude; mas, na realidade, tudo é vão palavreado. Falam disso
de passagem, entre as suas verdadeiras ocupações e as comidas, quando têm
o estômago cheio e já não podem comer mais. O único, o verdadeiro
interesse dos homens e das mulheres, sobretudo, desde que acaba a sua
juventude, é a comida. Como comer? O que comer? Quando? Onde? Não há uma
solenidade, uma alegria nem uma inauguração que não se celebre com
a festa.
Veja os viajantes. Neles se vê melhor o que digo.
“Museus, bibliotecas, Parlamentos, que interessante é isso! E onde
comeremos? Onde se come melhor?” Olhe os homens quando se reúnem para
comer, e os verá bem vestidos, perfumados, em torno de uma mesa adornada com
flores. Com que alegria esfregam as mãos e sorriem!
Se o fundo da alma fosse examinado para saber o
que desejava a maioria dos homens, se veria que é a satisfação do seu
apetite. Em que consiste o castigo mais cruel, desde a infância? É ser
condenado a pão e água! Qual é o criado melhor remunerado? O
cozinheiro! Qual é o principal cuidado de uma dona de casa? De que se fala
na maioria das vezes entre mulheres de classe média? E se as conversas da
alta sociedade não são de igual índole, deve-se a que os seus indivíduos
têm um mordomo que cuida exclusivamente da comida. Mas trate de
privar-lhes de tal comodidade, e verá de que falarão continuamente. Somente
falarão da alimentação, do preço das galinhas, do melhor modo de fazer
café, bolos e doces. Seja qual for o motivo com que se reúnam os homens,
casamento, batizado, enterro, consagração de um templo, recepção de um
viajante, encontro agradável, apresentação da bandeira, festa
de aniversário, morte ou nascimento de um grande sábio, de um pensador, de
um moralista, dir-se-ia que os interesses mais elevados de que falam não são
senão um pretexto, porque todos sabem que se comerá bem, que se beberá, e
que para isso se reuniram.
Muitos dias antes desta festa, sacrificam-se aves
e outros animais; trazem-se cestos de alimentos, e os cozinheiros, os
ajudantes, as lavadeiras, com os seus aventais brancos, “trabalham”
atarefados. Os cozinheiros, que cobram quinhentos rublos por mês, dão ordens;
e os seus ajudantes trincam, amassam, lavam, dispões e adornam. Os
mordomos, com ar solene, calculam e examinam tudo, como verdadeiros
artistas. O jardineiro prepara as flores, as criadas a louça...; todo um
exército de criados trabalha; gasta-se o produto de milhares de jornadas de
trabalho, para celebrar a memória de um grande homem ou de um
amigo falecido, ou para festejar a união de dois jovens.
Nas classes média ou baixa ocorre o mesmo. A gula
usurpa de tal modo o lugar do verdadeiro objetivo da reunião, que em grego
e em francês, uma mesma palavra, “noce”, serve para designar a um tempo o
matrimônio e a folia. Mas, pelo menos, entre os trabalhadores, não se
trata de dissimular tal sentimento. Os ricos, ao contrário,
consideram tais banquetes como uma satisfação dada ao uso e às
conveniências. Dizem que os aborrecem tais comidas: mas se tratar de
dar-lhes, em vez de ensopados esquisitos, algo mais simples, cozido, por
exemplo, verá que confusão armam; o que demonstra que, na realidade,
só pensam na gula.
A satisfação de uma necessidade tem limites, o
prazer não. Para satisfazer o estômago, basta comer pão, sopas ou arroz;
enquanto que para contentar a gula, não existe limite para os molhos e
outros ingredientes.
O pão é um alimento necessário e suficiente; e a
prova está em que milhões de homens fortes, leves, saudáveis, e que trabalham
muito, vivem apenas de pão.
Mas é melhor comer pão junto com outros
alimentos. É melhor molhá-lo em caldo de carne; é preferível também pôr
neste caldo diferentes legumes; e ainda melhor, comer carne, e não cozida,
mas assada, com manteiga e mostarda, e apreciar tudo isso com vinho tinto.
Já não se tem mais fome; mas todavia pode-se comer peixe.
E coisa singular! Os homens que comem assim
diariamente, e ante cuja comida, o festim de Baltasar que provocou a
cólera divina só se compunha de sobras, estão candidamente persuadidos de
que podem, apesar disso, levar uma existência moral.
IX
O jejum é uma condição necessária de uma vida
moral; mas no jejum, como na abstinência, não se sabe por onde começar.
Como se jejua? O que se deve comer? Que intervalo deve deixar-se entre as
refeições? Assim como não se pode trabalhar sem método de um modo sério,
de igual maneira não se pode jejuar sem saber por onde há-de começar
a abstinência. A ideia de jejuar com método parece estúpida e ridícula à
maioria.
Recordo com que orgulho me dizia um evangelista
opositor ao ascetismo monástico: “O vosso cristianismo não reside no jejum
e nas privações, mas nas carnes; geralmente, o cristianismo e a virtude se
harmonizam com a carne”.
Durante as trevas prolongadas, e em ausência de
todo guia pagão ou cristão, penetraram na nossa existência tantas noções
selvagens e imorais, que não é difícil compreender a insolência e a
loucura que encerra a afirmação que acabo de citar.
Se não nos inspira horror tal afirmação, é porque
olhamos sem ver e escutamos sem ouvir. Não há odor, por mais asqueroso que
seja, a que o homem não se acostume. Não há ruído a que não se habitue,
nem canalhice que não olhe com indiferença. De maneira que não se fixa
naquilo que admiraria a um homem não acostumado a tais coisas. O mesmo
ocorre na esfera moral.
Visitei há pouco os matadouros de Tula. Estão
construídos segundo um novo modelo aperfeiçoado, como nas grandes cidades,
de modo que os animais mortos sofram o menos possível.
Faz muito tempo já que lendo o excelente livro
“Ethics of Diet”, sentia desejos de visitar os matadouros, para
assegurar-me por mim mesmo da essência do problema de que se fala quando
se trata do vegetarianismo; mas ocorria-me algo parecido a o que se nota
quando se sabe que se vai experimentar um sofrimento agudo que ninguém
pode impedir. Adiava sempre a minha visita.
Mas recentemente encontrei no caminho um abatedor
que ia a Tula. Era um trabalhador pouco hábil e a sua tarefa consistia em
amarrar os animais. Perguntei-lhe se não lhe davam pena os bovinos.
-O que obteria com isso? De qualquer forma, tenho
que matá-los.
Mas quando lhe disse que não é necessário comer
carne, a qual constitui um alimento de luxo, concordou comigo que
verdadeiramente era de sentir.
-Mas o que fazer? É preciso ganhar a vida. Antes,
temia matar: o meu pai não jamais matou nem uma galinha.
De facto, à maioria dos russos repugna-lhes matar,
sentem piedade, e expressam tal sentimento pela palavra “temor”. Ele
também temia, mas deixou de temer, e explicou-me que a sexta-feira era o
dia de mais trabalho.
Tive recentemente uma conversa com um soldado,
açougueiro, que também se admirou ao dizer-lhe eu que era uma lástima
matar. Contestou-me que é um costume necessário; mas finalmente, concordou
que dá pena, e acrescentou:
-Sobretudo quando o boi se encontra resignado e
manso, quando vai ao abate com toda confiança. Sim, inspira muita piedade.
É horrível! Horríveis são, de facto, não os
sofrimentos e a morte dos bovinos, mas o facto de que o homem, sem nenhuma
necessidade, cale o seu sentimento elevado de simpatia a seres vivos como
ele, e seja cruel vencendo a sua repugnância. Quão profunda é no coração
do homem a proibição de matar a um ser vivo!
Um dia voltávamos de Moscovo, uns coletores que
iam ao bosque levaram-nos nos seus carros. Era a quinta-feira santa; eu
estava sentado na frente do carro, junto ao carroceiro, que era robusto,
corado, grosseiro: evidentemente era um lavrador aficionado à bebida.
Entramos numa aldeia, e vimos, com perdão seja dito, um porco engordado,
branco rosado, que juntavam a uma casa para matá-lo. Gritava de um modo
desesperado, com gritos que pareciam humanos: no momento preciso que
passávamos por ali, começavam a degolar-lhe. Um homem cravou-lhe a faca na
garganta. Os grunhidos do porco foram mais fortes e agudos; o animal escapou-se
escorrendo sangue. Sou míope, e não vi todos os detalhes da cena:
vi unicamente um corpo rosado como o de um homem e ouvi os grunhidos
desesperados. O carroceiro observava tudo aquilo sem afastar a vista.
Pegaram de volta o porco, o derrubaram e submeteram-no. Quando cessaram os
seus gritos, o carroceiro lançou um profundo suspiro:
-Como pode Deus permitir isso?
Tal exclamação demonstra a profunda repugnância
que inspira ao homem à matança. Mas o exemplo, o costume da voracidade, a
afirmação de que Deus admite tais coisas, fazem que os homens percam por
completo esse sentimento natural.
Era uma sexta-feira. Fui a Tula, e encontrando um
amigo meu, homem bom e sensível, lhe roguei que me acompanhasse ao
matadouro.
-Sim, ouvi dizer que está muito bem instalado e
gostaria muito de vê-lo; mas se matam não irei.
-E por que não? Precisamente isso é o que quero
ver; já que se come carne, é preciso ver como se matam os bois.
-Não, não posso.
É de notar que o meu amigo é caçador, e que
portanto mata também.
Chegamos. Apenas na porta, sentia-se um odor
forte, repugnante, de putrefação como o da cola de carpinteiro.
Quanto mais avançamos, mais cresce tal odor. O
edifício é de tijolo vermelho muito grande, com cúpulas e altas chaminés.
Entramos pela porta da garagem. À direita há um grande pátio cercado, que
tem uma área de um quarto de hectare. Ali é onde, duas vezes por semana,
amontoam o gado vendido. No extremo deste pátio, está a portaria: à esquerda,
dois prédios com portas ogivais; o pavimento é de asfalto, formando duplo
declive, e ali há aparatos para pendurar os bois mortos.
Junto à portaria, estavam sentados num banco seis
abatedores, que lavavam os aventais manchados de sangue, com as mangas
também ensanguentadas, arregaçadas, mostrando os seus braços musculosos.
Haviam terminado já o seu trabalho meia hora antes, de modo que aquele dia
só pudemos ver o prédio vazio. Apesar das portas abertas, sentia-se
um odor enjoativo de sangue quente; o pavimento era escuro, reluzente, nas
valas havia sangue coagulado.
Um dos abatedores explicou-nos de que modo se
mata, e mostrou-nos o lugar em que acontece tal operação. Não a compreendi
de todo, e formei-me numa ideia falsa, mas terrível do abate; pensava,
como ocorre frequentemente, que a realidade me causaria menos impressão
que o imaginado, mas estava errado.
Outra vez cheguei ao matadouro à boa hora. Era a
sexta-feira anterior à Páscoa de Pentecostes, num dia quente de Junho; o
odor de sangue era ainda mais forte que da outra vez e trabalhava-se duramente;
o grande pátio estava cheio de gado e havia muitos bois também nos galpões
contíguos ao prédio central.
Na rua havia carretas carregadas de bois, vacas e
bezerros.
Noutros carros, puxados por bons cavalos, viam-se
bezerros vivos empilhados, com as patas para cima. Estes carros aproximavam-se
do matadouro e descarregavam.
Havia ainda outros carros com bois mortos cujas
patas se moviam ao compasso das sacudidas que dava o veículo, mostrando as
suas cabeças inertes, os pulmões vermelhos, e o fígado marrom; todos saíam
do matadouro. Junto à cerca havia cavalos montados, pertencentes aos
fazendeiros. Estes, com as suas longas blusas e de chicote na mão, iam
e vinham pelo pátio, ou marcavam com alcatrão o gado que lhes pertencia;
negociavam o preço e vigiavam o transporte do gado desde o pátio ao
galpão, e desde este ao prédio.
Toda aquela gente parecia preocupada pelos seus
negócios e ninguém se importava em saber se era uma boa ou má ação matar
aqueles bois; tanto pensavam nisso, como se importavam com a composição
química do sangue que corria pelo chão.
Não havia nenhum abatedor no pátio. Todos
trabalhavam. Aquele dia foram mortos uns cem bois.
Entrei no prédio central e detive-me junto à
porta; detive-me, porque no interior não era possível entrar, por causa do
gado que ali se amontoava, e porque o sangue gotejava do teto, espirrando
nos abatedores. Se houvesse entrado, também mancharia a roupa. Uns homens
derrubavam um boi, outros faziam deslizam outro numa pista e havia um boi
morto, com as patas brancas, que era esfolado por um abatedor.
Pela porta oposta à que eu estava faziam passar
ao mesmo tempo um boi vermelho e gordo. O arrastavam. Apenas havia
atingido o limiar, quando um dos abatedores, armado com um machado de
larga mão, lhe feriu no pescoço. Como si a um tempo lhe houvessem
cortado as quatro patas, o boi caiu pesadamente no chão, voltou-se de lado
e moveu convulsivamente as patas e a cauda. Então um abatedor se pôs sobre
ele, pegou-lhe pelos chifres, fez com que a cabeça se baixasse até o chão,
e outro abatedor o degolou. Pela ferida aberta, o sangue, de um vermelho
escuro, brotava como de uma fonte, e um menino sujo de sangue o
recolhia numa bacia de metal. Entretanto, o boi não cessava de mover e
sacudir a cabeça e agitar convulsivamente as patas.
A bacia enchia-se rapidamente, mas o boi vivia
ainda e continuava golpeando o ar com os cascos, o que obrigava os
açougueiros a afastar-se. Tão logo a bacia estava cheia, o rapaz o colocou
na cabeça e o levou à fabrica de albumina, enquanto outro menino trazia outra
bacia que se enchia à sua vez.
O boi continuava esperneando desesperadamente.
Quando cessou de correr o sangue, o açougueiro levantou a cabeça do boi, e
começou a esfolá-lo; o animal ainda se movia. Tinha a cabeça já esfolada,
vermelha, com as veias brancas, e tomava a posição que lhe davam
os abatedores. Pendia a pele a ambos os lados, e o boi não cessava de
mover-se. Outro açougueiro pegou então o boi por uma pata, a quebrou e a
cortou: o ventre e as outras pernas estremeciam ainda convulsivamente;
depois, lhe cortaram os membros restantes e os lançaram num monte com as
pernas dos outros bois do mesmo pecuarista.
Logo arrastaram o boi à polia e penduraram-no.
Então unicamente foi que o boi não deu sinal de vida. De igual maneira vi
matar desde a porta três outros bois. A todos lhe fizeram a mesma operação;
a todos lhes cortaram a cabeça, cuja língua pendia entre os dentes; a
diferença consistia em que às vezes o abatedor não acertava o golpe; o boi
resistia, mugia e, jorrando sangue, tratava de escapar das mãos dos
açougueiros. Então lhe arrastavam ao centro do prédio, lhe golpeavam de
novo e caía.
Dei a volta, e aproximei-me à porta oposta e vi
repetir a mesma operação, mas mais de perto e com maior claridade. Vi
sobre tudo o que não havia podido ver da outra porta: de que maneira se
obrigava os animais a entrar. Cada vez que pegavam um boi do galpão e
o arrastavam por meio de uma corda amarrada aos chifres, o animal,
farejando o sangue, resistia, mugia e retrocedia; dois homens não puderam
arrastá-lo à força; e eis aqui por que, então, um dos abatedores se
aproximava, pegava o boi pelo rabo, o torcia e lhe rompia uma vértebra; o
animal avançava temeroso. Quando acabaram de matar os bois de um pecuarista, começaram
com os de outro.
O primeiro animal deste novo rebanho era um touro
bonito, robusto, de cor clara com manchas e extremidades negras; um animal
jovem, musculoso, enérgico. Tiraram a corda, baixou a cabeça e se deteve
com decisão; mas o abatedor marchava atrás, e como um ferreiro que pega o
cabo de um fole, pegou a cauda, a torceu; rangeram as vértebras, o
touro arremeteu contra os que prendiam a corda, jogando-os ao chão, e se
deteve de novo olhando a ambos os lados com os seus olhos negros cheios de
fogo; de novo rangeu a cauda, o touro avançou, e então chegou aonde se
queria; o abatedor se aproximou, apontou e golpeou; o golpe mal dirigido não
fez cair o boi, que agitou com força a cabeça, mugiu, e sangrento
e furioso soltou-se e reclinou-se. Todos que estavam junto à porta
fugiram; mas os abatedores, acostumados ao perigo, apoderaram-se rapidamente
da corda, de novo romperam a cauda e outra vez o touro encontrou-se no
prédio, no lugar requerido. Já não pôde escapar. O abatedor apontou
rapidamente, encontrou o ponto que queria, golpeou, e o belo animal, cheio de
vida, caiu movendo a cabeça e as pernas enquanto o degolavam e esfolavam.
-Maldito diabo! Não caiu onde era preciso –
murmurou o abatedor, cortando-lhe a pele da cabeça.
Cinco minutos depois, a cabeça negra era
vermelha, e aqueles olhos, que brilhavam com tanta força cinco minutos
antes, apareciam vítreos e apagados.
Logo fui ao lugar onde matam as ovelhas. Era um
grande prédio com pavimento asfaltado, e mesas com apoios, sobre as quais
se degola as ovelhas e os bezerros. Naquele bloco impregnado de odor de
sangue, havia acabado o trabalho, e unicamente estavam dois abatedores. Um
deles soprava a perna de uma ovelha morta e esfregava com a mão o
ventre inchado do animal; o outro, que era moço e levava o avental cheio
de sangue, fumava um cigarro. Seguiu-me um homem que parecia um antigo
soldado. Levava um cordeiro de um dia, preto, com uma mancha no pescoço e
as patas amarradas, e o pôs sobre a mesa.
O soldado, que se sabia que havia ido muitas
vezes àquele lugar, deu bom-dia e iniciou uma conversa explicando que
tinha que pedir licença ao seu amo. O moço do cigarro aproximou-se empunhando
uma faca, e respondeu que lhes davam licença nos dias de festa. O cordeiro
vivo estava tão imóvel como a ovelha morta e inchada com a diferença que
agitava vivamente a pequena cauda e as suas laterais se moviam mais
rapidamente que de costume. O soldado, sem fazer nenhum esforço, apoiou a
cabeça do pequeno animal na mesa, e o abatedor, sem parar de falar,
segurou com a mão esquerda a cabeça do cordeiro, e cortou-lhe o pescoço. A
vítima agitou-se, a cauda ficou rígida, e cessou de mover-se. O
açougueiro, enquanto brotava o sangue, acendeu de novo o cigarro. Quando
acabava de sangrar, o cordeiro agitou-se de novo, e a conversa continuou
sem interromper-se um só instante. E as galinhas e os frangos, que por
milhares se sacrificam diariamente nas cozinhas, e que com as cabeças
cortadas, jorrando sangue, se estremecem e batem as asas de uma maneira
tão cômica como terrível!
E, no entanto, a Senhora de coração sensível come
essa ave com a completa segurança do seu direito, afirmando duas opiniões
que se contradizem: a primeira, que está tão delicada, segundo lhe
informou o seu médico, que não poderia suportar uma alimentação
exclusivamente vegetal, e que ao seu débil organismo a carne faz falta; em
seguida, que é tão sensível, que não pode fazer sofrer aos animais, nem
suportar a visão dos seus sofrimentos.
Na realidade, esta pobre senhora está fraca
porque a acostumaram a nutrir-se de alimentos contrários à natureza
humana; e não pôde deixar de fazer sofre os animais pela simples razão de
que os come.
X
Não se pode fingir ignorância, porque não somos
avestruzes; não podemos crer que, se não olharmos, não acontecerá o que
não queremos ver. Mais impossível é ainda não querer ver o que comemos.
Se pelo menos fosse necessário, ou sequer útil;
mas não!, para nada serve (1), a não ser para desenvolver os sentimentos
bestiais, a luxuria, a gula, a embriaguez.
Isso está confirmado pelo facto de que os jovens
bons e puros, sobretudo, as mulheres e as jovens compreendem, de um modo
instintivo, que a virtude não se harmoniza com a carne, e assim, quando
querem ser bons, abandonam o alimento animal.
O que quero provar? Acaso que os homens, para ser
bons, devem parar de comer carne? Não.
Quero somente demonstrar que, para conseguir
levar uma vida moral, é indispensável adquirir progressivamente as
qualidades necessárias, e que de todas as virtudes, a que primeiro há que
conquistas é a sobriedade, a vontade de dominar as paixões. Tendendo
à abstinência, o homem seguirá, necessariamente, certa ordem bem definida,
e em tal ordem, a primeira virtude será a sobriedade na alimentação, o
jejum relativo.
Busca-se seria e sinceramente o caminho moral, a
primeira coisa que o homem deve fazer é privar-se de comer carne; pois,
além de que excita as paixões, o seu uso é imoral, porque exige uma ação
contrária ao sentimento da moralidade – o assassinato – que provocam a
gula e a voracidade.
Por que a privação da carne há-de ser a primeira
etapa para a vida moral?
A isso se responde perfeitamente no livro “The
ethics of Diet”, não por um só homem, mas por toda a humanidade, na pessoa
dos seus melhores representantes desde que a humanidade alcançou a idade
da razão.
“Mas, por que se a imoralidade de uma alimentação
animal foi conhecida desde tanto tempo, não se chegou até agora a ter
consciência dessa lei?” Perguntarão aqueles que julgam antes pela opinião
atual que pela sua própria razão. A resposta é que o movimento moralizador que
constitui a base de todo progresso se cumpre sempre lentamente, e que o indício
de todo movimento reside no seu caráter de perpetuidade e constante
aceleração.
Tal é o movimento vegetariano; este movimento
está expresso tão bem por todos os escritos que se incluem no livro citado
como pela existência da própria humanidade a qual tende mais e mais, sem
que sequer o perceba, a passar da alimentação animal ao regime vegetal e
este movimento manifesta-se com uma força particular e consciente no vegetarianismo,
que adquire cada vez maior extensão.
Cada vez há mais homens que renunciam ao consumo
de carne na Alemanha, na Inglaterra e na América, e a cada ano aumenta
nesses países o número de hotéis e pousadas vegetarianas.
Este movimento deve alegrar aos homens que tratam
de realizar o reino de Deus na terra, não porque o vegetarianismo seja por
si mesmo um passo para esse reino, mas porque é o indício de que a
tendência à perfeição moral do homem é séria e sincera, já que esta tendência
implica uma ordem invariável que lhe é própria e que começa pela primeira
etapa.
Há que alegrar-se por isso, e esta alegria é
compatível à que devem experimentar os homens que, querendo alcançar o
andar mais alto de um edifício, pensaram primeiramente em escalar a parede
e perceberam, por fim, que o meio mais simples é começar pelo
primeiro degrau da escada.
(1) Aqueles que o duvidam, leiam os numerosos
livros escritos por médicos e sábios, onde se prova que a carne não é
necessária como alimento. Não se ouça aos médicos antigos que preconizam o
uso da carne, porque a preconizaram os seus antecessores; unicamente o
fazem por teimosia, como se defende tudo que é velho e fora de moda.
Por Leon
Tolstói